maio 09, 2010

é preciso dançar...


Ela entrou pelos corredores apressadamente e foi deixando os sapatos pretos pelo portão. Era preciso libertar-se, e era preciso despir-se completamente deles em busca de ritmo sensual, de vida e música, de olhos que enxerguem e percebam a delicadeza dos pés soltos – porque em cada dia ela precisava do caminho que a levasse a si mesma. E ela tinha os pés, os pés finalmente desnudos na poeticidade plena, e dela – somente dela - e não tinham marcas nem correntes.

Aqueles sapatos lançados ao chão resmungaram uma voz concentrada, como se fosse possível ouvir por intermédio deles uma voz musical distante, mas, intensa. Porque há mulheres que usam os pés para dançarem, mas, outras, usam-no para primeiro gemerem e depois para se libertarem, para darem o salto que as tire da cola asfáltica e o impulso que arrebente paredes – e muros.

É preciso ver, e enxergar, quando uma mulher tira os sapatos e os lança em qualquer canto, em qualquer chão, em qualquer lugar, ainda que tenha que pisar em solo causticante e refrescar os pés em pano umedecido, pois existe aí uma voz, um grito, uma provocação ao diálogo, daqueles diálogos de enfrentamento, de contato com o solo poético e humano, enfim, para ser o encontro com a música feito dança – a música dos pés libertos!

Sapatos lançados ao chão funcionam como as claves musicais, sobretudo, se forem pretos, pois abrem e norteiam a partitura - indevassável aos mórbidos, irreconhecível aos indolentes, inexpressiva aos cegos e impossível aos que passam, insensíveis, diante de uma mulher que se desnuda, assim, em busca da plenitude.

Quem tira os sapatos busca a leveza e o conforto de um ato libertário – busca o mar, e busca a brisa, e busca o estado de comunhão, e busca a poesia, e busca aqueles olhos que enxerguem, e busca o espaço, e busca o vento, e busca a tempestade, e busca o toque das mãos feito escultura renascentista.

Em algum ponto dos pés femininos começa o paraíso!

Ela, então, agora descoberta mulher, tirou os sapatos e os manteve ali, jogados, feito símbolo de resistência, marco de libertação, desenho melódico, expressão de inteligência, convite ao encontro dialógico pleno. Esta mulher tirou os sapatos em busca da pele, dos poros e do corpo – em busca da alma que transita pelas veias, da vida que organiza os músculos e arrebata os seios, da luz que cintila nos lábios e faz dilatar as pupilas.

A mulher tirou os sapatos porque as asas não estão em suas costas, mas, nos pés – e ela buscou asas em seus pés que a levassem para as cabanas alpinas, para beber na mão da Poesia ou, quem sabe mais próximo, ao alcance de um dedo, nas vias e pousadas andinas ou, simplesmente, para o risco de um verso possível no encontro de gente e seres apenas.

Esta mulher, tão próxima assim, com os pés soltos – sapatos jogados - pisaria uvas com intensidade, cantando e dançando por toda a noite. Ela ergueria os vestidos para pisar uvas ainda mais profundamente e, ao amanhecer, lançaria mais uvas ao lagar e continuaria cantando alegremente com os vestidos levantados, mergulhada em vinho e poesia napolitana.

 
©2007 '' Por Elke di Barros